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segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Palestra feita em Setembro de 2008 na sede da Academia Campinense de Letras

MAESTRO ANTONIO CARLOS GOMES
(11 de Julho de 1836 / 16 de Setembro de 1896)

Antes de começar a falar sobre ACG, eu gostaria de contar uma estória:
Sou sobrinha-tri-neta do Maestro, pois, sou tri-neta de Sant’Anna Gomes, seu irmão, mas desde minha infância e isso se estendeu por toda minha vida, só o que ouvíamos dos mais velhos, em minha casa eram críticas sobre este genial maestro.

Há um ano, comecei a pesquisar sua vida, com a intenção de preparar uma biografia ampla e detalhada e dá-la a meus netos, para que sua lembrança não se perdesse. E decidi, mais tarde, por influência dos filhos, transformar em um livro, onde eu pudesse abranger sua obra e sua vida e onde eu pudesse desmistificar invencionices a seu respeito. E é o que estou fazendo, e depois de todos estes anos alheia a tanta beleza, apaixonei-me por ele e por toda sua genialidade.

Minha pesquisa é de natureza afetiva, empenhada em resgatar o porte artístico do mais brasileiro de todos os grandes compositores da ópera do século XIX, colocando-o no lugar que merece ser colocado. É um livro que irá tratar das vitórias, dos sucessos, das perdas, das tristezas, da importância de Carlos Gomes como artista, do peso de sua obra, de seu talento e sua inspiração, de sua condição de maior artista americano no seu gênero, de seu valor como inventor e produtor de beleza, como também do homem, do pai, do irmão, do gênio.
Carlos Gomes nasceu em 11 de Julho de 1836. Seu pai era um homem austero, despótico, perfeccionista e bem maduro. Possuía uma vitalidade pujante e um privilegiado senso artístico, mas era demasiadamente ciumento.
De sua mãe sabe-se muito pouco: criatura bela, alta, robusta, morena clara, dotada de temperamento vivo e ardente, 30 anos mais nova que o marido.

Quando CG tinha oito anos de idade, sua mãe é brutalmente assassinada aos 28 anos.
Suspeitou-se ter sido o marido, o autor do crime. Algumas pessoas afirmaram tê-lo visto na manhã do crime, entrar em casa e lavar as mãos sujas de sangue. Mas o processo criminal nunca foi localizado, simplesmente desapareceu sem deixar vestígio.
CG começou a estudar música aos 10 anos.
Aos 12 anos já dava récitas de piano, nas quais figuravam suas primeiras produções musicais.
O menino cresce ouvindo e executando arranjos e adaptações.
Foi considerado mais tarde, como um dos melhores acompanhadores, pela viva intuição musical, que lhe permitia coadjuvar qualquer instrumento ou as vozes humanas, com suprema maestria. Era já, o gênio que falava mais alto.
Tinha também nesta ocasião, lindíssima voz de tenor.
Aos 15 anos já compunha valsas, quadrilhas e polcas.
Aos 20 anos, CG já havia composto duas Missas e algumas obras.

Aos 23 anos, CG compõe a fantasia “Alta Noite”, para clarinete, consegue uma apresentação oficial ao público em SP, conseguindo projetar-se e recebendo aplausos delirantes.
Nessa época, os irmãos travam conhecimento e amizade com a nata da sociedade paulistana daquela época.
Esta vida entre amigos, composições, festinhas, viagens, fins-de-semana e diversões de juventude aconteceu entre os anos de 1857 a 1859, uma época descompromissada e feliz.
CG foi estimulado a ir para a Corte, em cujo Conservatório poderia aperfeiçoar-se. Mas o pai não possuía sequer recursos para uma viagem, muito menos para sustentá-lo na Corte.
Mesmo assim, em Junho de 1859, vai para o Rio de Janeiro e passa a contar com o apoio do Imperador.
D. Pedro II sabia que o Brasil não era, como não é até hoje, um país de povo culto e erudito, e por isso, procuravam mandar estudantes, artistas e cientistas para a Europa.
Segundo D. Pedro: “Um povo livre é um povo culto, porque a liberdade não pode existir onde não há cultura e educação.” E o brasileiro não era nem naquela época, como não é ainda hoje e não o será tão cedo, um povo culto nem educado e muito menos um povo erudito.
O talento do rapaz, sua conquista de bolsa de estudos pelo Conservatório, impressionam D. Pedro que manda-o aprontar-se para ir estudar em Milão.
CG foi para a Europa por conquista e merecimento, dentro de estipulações contratuais e legais e não por benemerência ou favores de quem quer que fosse.

Ele próprio fez por merecer, dentro de um processo administrativo conduzido por disposições de contratos assinados pelo Governo Imperial.

Compõe “Joanna de Flandres”, sua segunda ópera – 1863 – e a ópera é aplaudidíssima (compôs duas óperas em língua portuguesa: Sua primeira ópera, “A Noite do Castelo”).

Carlos tem 27 anos. Foi com esta ópera de grande importância, por ser uma das primeiras óperas compostas em língua portuguesa, que CG foi agraciado com a bolsa de estudos em Milão. Depois da estréia, a peça nunca mais foi montada, ficando esquecida durante todo esse tempo.

Parte para a Itália a 9 de Dezembro de 1863. Ficava obrigado a escrever uma composição importante nos primeiros dois anos de permanência na Europa.
CG exilava-se num país distante, voluntariamente. Mais tarde, receberia prêmios e pagaria altos preços por eles.

Sente pela primeira vez, a diferença de clima e de temperatura entre o Brasil tropical e a austera Europa.
Essa diferença será para ele um eterno problema. Em Milão, terá suas casas sempre exageradamente aquecidas.
Entra em contato com os modelos franceses, de suma importância, pela permeabilidade de seu talento, pela facilidade que tinha em aprender e por sua fabulosa capacidade de pensar a música. Desse aprendizado em Paris, irão ecoar reminiscências de suas futuras composições.
Anos mais tarde, Rossi diria ao maestro:
“Quando chegaste do Brasil, já trazias a certidão do talento, a prova do gênio, que as palmas populares atestam e celebrizam.”

Os seis anos que vão da chegada a Milão até “O Guarani” são para CG anos de estudo e de aprendizado, ajudando-o a superar uma desorientação provocada pelo impacto com as profundas transformações em ação no teatro musical italiano contemporâneo.

Ser brasileiro naqueles tempos, era ter imperador, corte e nobreza. Era vender, comprar e maltratar o negro escravo. Ser brasileiro era ter nas grandes cidades um grande teatro de ópera. Foi desse teatro de ópera que nasceu um CG. Era ele brasileiro legítimo.
Para um gênio como ele, permanecer no Brasil seria não ser ninguém. O Rio de Janeiro de então era para ele encantador, mas pequeno.

Aos 27 anos, CG já era experiente criador de música e bom compositor, com duas óperas de grande porte já levadas à cena, com muitas obras menores e principalmente, com um diploma de laureado do Conservatório de Música do Rio de Janeiro.
O Brasil tinha grandes talentos, no entanto, nenhum deles com tanto gênio e arte, a ponto de ir para a Europa e lá tornar-se importante elemento na renovação de uma forma de arte essencialmente nacional de outro país.
Difícil acreditar que um desconhecido cidadão do interior de São Paulo, provinciano tocador de instrumentos na minúscula banda de seu pai, depois, aluno de Conservatório no Rio de Janeiro, regente de orquestra e compositor de óperas em português na capital de um país tão distante e desconhecido, viesse a ser nome de rua em Milão, ao lado de outras ruas com nomes dos mais ilustres compositores da Itália, terra da música e palco de grandes espetáculos.
É mais que conhecido nos inúmeros restaurantes e bairros, o Caffè Guarany – tradicional marca de café da Itália.
Existe o prato “à Carlos Gomes” em um restaurante da Piazza Duomo e em várias sorveterias, dá-se a uma exótica taça de sorvetes de maracujá e baunilha o nome de “Coupe Pery e Cecília”.
O caso é raríssimo nos anais da ópera italiana e pouco freqüente na história da música, pois, seria difícil um brasileiro tornar-se importante e famoso na Itália musical da segunda metade do século XIX. Na época, os europeus não sabiam nem onde ficava o Brasil, nem que língua se falava, nem conheciam nossa história, nem nossas características fundamentais.
CG conseguiu ser importante dentro desse mundo, como pioneiro renovador de uma forma de expressão artística fundamental no país para o qual emigrara.
Antes de provar que era bom, devia provar que não era mau, o que era muito mais complicado.

CG chegou a Milão em Fevereiro de 1864, no momento certo. A década de 1860 é a década de início das mudanças e do apogeu da atração do exotismo na música dramática na França e na Itália.
É dentro desse movimento, que CG começa a ser artista da música, sob a estética da ópera italiana.
Para um musicista da época, Milão é uma cidade importante: é a cidade da Scala, dos grandes editores, um centro onde se pode encontrar muita gente.

Filho de um país desconhecido e confundido com Austrália ou África, na irritante indiferença de povos adiantados, CG de cabelos pretos, longos e grossos, pele escura, pretendendo um lugar no Conservatório de Milão, onde estudava a nata da juventude italiana, era algo bizarro e esquisito.
A hostilidade e o preconceito foram cedendo, graças ao seu talento incomum e à sua grandiosa genialidade.
Não seria o apadrinhamento do Imperador nem muito menos, as cartas de apresentação dos amigos ou ajuda do irmão, que abririam as portas a CG para trabalhar na Itália, nem de apresentar, em dois anos, uma primeira revista musical – “Se sa minga”, que obtém imenso sucesso e que o faz tornar-se conhecido e admirado como o autor criativo desta e de outra revista - “Nella luna”, logo em seguida. Foi um sucesso estrondoso, fantástico, enorme, como há muito não se via nos teatros da Itália.

E nem de, em seis anos, levar ao palco do Teatro alla Scala uma ópera que se constituiria um dos três ou quatro maiores sucessos do teatro lírico da Itália de seu tempo, na primeira obra bem recebida pelo público europeu e um dos mais importantes sucessos de todos os palcos do mundo nos anos seguintes.

CG foi o compositor pioneiro a praticar, com esplêndido e incomensurável sucesso, os novos princípios.
Seria CG quem lhes iria dar esse diferente e esse desconhecido, depois de fazer parte dos meios musicais da cidade.
Foi o aluno mais talentoso daquela Escola, merecedor de “fazer seus estudos em qualquer conservatório da Itália”, segundo seu professor.
Para que lhe fosse concedida bolsa tão liberal e o direito de, no fim dos estudos, fazer exame público e obter a carta de Maestro, o sucesso de suas duas primeiras óperas contribuiu enormemente.

CG viveu entre duas nacionalidades.
Em Milão, era como um animal perdido em terras estranhas, um peixe fora d’água, um estranho no ninho, absorto em suas criações geniais, perdido em seus pensamentos e, ao mesmo tempo, surpreendente na docilidade e integridade de seu caráter.
CG era um coração generoso e nobre, cheio de afeição pelos amigos e absoluto entusiasmo por sua arte, que era o ar que respirava.

Logo CG estrearia como artista de ópera na Itália, com “O Guarani” e ainda por cima no Scala, mas gozava de simpatia no ambiente milanês, por ser um jovem franco e jovial, cheio de fogo latino e de acesas esperanças.

Anos mais tarde, já habituado à Itália e a Milão, compra vasto terreno em Maggianico e manda erguer sua casa, sua esplêndida “Villa Brasilia”, levando do Brasil em cada uma de suas viagens, dezenas de mudas de lindíssimas árvores tropicais, como também vários sagüis e pássaros.

Sua inspiração e seu talento incomodavam e causavam inveja a seus colegas, uma vez que CG extraía música genuína de sons da natureza e do mundo ao seu redor. Além disso, CG aparecia em Milão com melodias que possuíam acentuado sabor brasileiro, o que surpreendia a todos como coisa absolutamente inédita, sons que lhes entravam magicamente pelos ouvidos e lhes fazia muito bem.

Mas o preconceito era grande: nem o ambiente artístico, considerado mais liberal era diferente da sociedade burguesa italiana da época e CG sentia muita dificuldade de ambientação.
O preconceito contra ele duraria toda a vida, mais ainda no momento em que os italianos decidiram não dar mais vez a um compositor estrangeiro, que tirava dos compositores nacionais, grandes chances de criação.
Até mesmo os familiares de Adelina, sua futura mulher, chamavam-no de “selvagem” e de “negro”.
Ele nunca freqüentará os salões mundanos, pois, não o convidavam.
O que CG gostava mesmo era de se meter nos bastidores dos teatros e nos escritórios de empresários e de tratar da apresentação de suas obras. Era praticamente só nisso que CG pensava, quando não estava compondo.
CG era apaixonado pela música, por sentar-se ao piano, cantar e compor.

Em 1866, quando termina seus estudos, sente-se motivado e preparado para criar. Obtém o título de “maestro”, o que se concedia aos compositores diplomados.
Imediatamente, italianizam o nome Carlos Gomes: é Carlo Gómez que começa a ser citado nos jornais. CG tratava, sempre, de explicar que era “Carlos” com “s” e que era brasileiro.

CG obtinha sucesso com sua música num período em que nenhuma ópera nova de autor italiano era sucesso real de público.
Na Itália cresce sua fama. No Brasil, o fato apenas provocara inveja.
Mesmo assim, tornou-se um conceituado compositor, teve amigos muito importantes, era popular não só em Milão, mas pela Itália toda.
“O Guarani” logo se tornou a ópera de maior sucesso popular de seu tempo.
Então, casa-se com Adelina Peri, exímia pianista que conhecera no Conservatório de Música de Milão, em 1871, que estava grávida de sete meses. Não foi um casamento de conto de fadas. CG já é nesta época, o festejado autor de “O Guarani”.

O sucesso de “O Guarani” o consola, uma vez que se sente atormentado com as novas condições de vida e obrigado a ficar mais em casa, o que o aborrece muito, acostumado que estava com saídas à noite.
Adelina ficará constantemente grávida, terá três filhos em menos de quatro anos e CG estará quase sempre ausente, pois, fará inúmeras viagens pela Itália, acompanhando, sempre agitado e exigente, ensaios e récitas de “O Guarani”.

As temporadas de ópera e balé dos teatros de Milão, eram entregues a empresas e a empresários. Eram os empresários que se encarregavam de contratar cantores, regentes, técnicos, copistas, coristas, instrumentistas, bailarinos e eram eles que arcavam com lucros ou prejuízos, cobrando não só pelos ingressos de bilheteria como, também, por tudo que fosse possível cobrar. E CG viu que não seria difícil encenar sua ópera na Scala, desde que tivesse bastante dinheiro para pagar por isto.

Todo o corpo de baile de “O Guarani” contava com mais de 500 pessoas. A orquestra era preenchida por mais de cem deles, 16 primeiros violinos, 8 violinos, 12 violoncelos, 9 contrabaixos, 2 harpas, etc.

Não há quem não conheça os maravilhosos acordes de sua estupenda abertura. A ópera era agradável, com música de sabor bem brasileiro, onde os índios tinham papel principal. Foi representada em toda a Europa.
“O Guarani” é obra pioneira dentro da renovação do melodrama italiano, um diamante que conserva seu eterno brilho e onde quer que se apresente, conquista público e crítica.

Fumava “Sigari Virginia”, uns charutinhos de fumo forte e na ponta uma piteirinha de palha dura e fumava muito, o que provavelmente tenha lhe causado o câncer.

PERSONALIDADE

Uma característica negativa de CG foi não fazer cerimônia em contar a quem quer que fosse, suas misérias e humilhações. Nunca procurou demonstrar amor-próprio ou orgulho, nunca encobriu suas necessidades, dívidas e problemas familiares.
Não era culto, nem erudito, nem leitor de colunas intelectuais dos jornais, nem conhecedor do Belo e do Sublime.
Sua personalidade inquieta e insegura o faziam sempre gastar mais do que podia, assumir dívidas contando com recebimentos futuros incertos e considerar descabido ter uma vida mais simples e comedida.

Seu perfeccionismo o levava a sugerir e até mesmo exigir nomes de cantores e regentes de orquestra para suas óperas, o que causava infindáveis discussões com os empresários, donos do dinheiro.
Administrou mal sua vida e seu patrimônio, o que o levará mais tarde a uma descida de nível de vida de artista famoso e o que dará margem a comentários que procurariam arruinar a posição conquistada.

Seu prestígio na Itália provinha da novidade e beleza de suas obras, sem apreciações paralelas, apenas e tão somente isto. O homem CG não lhes interessava, ao contrário, lhes incomodava profundamente.
Ser estrangeiro e compositor de sucesso, não dava a ele para os italianos, privilégios de herói ou de conquistador. Aliás, mais tarde, o fato de ser estrangeiro provocaria uma reação adversa e inesperada.
CG possuía uma personalidade frágil afetada por inquietações em relação aos outros. Jovem, vivendo em um país que não era o seu, preocupado em não decepcionar D. Pedro, CG pensava no público, pensava no sucesso como meta imediata e muito pouco em si mesmo.

“Fosca” foi outro sucesso, a segunda ópera que compunha na Itália. É considerada por alguns críticos, sua melhor ópera em quatro atos.
Com a “Fosca”, CG foi o primeiro compositor de óperas na Itália a criar um papel completo e acabado para uma atriz-cantora, dentro de uma nova vocalidade por ele criada.
A “Fosca” era e é a obra mais importante da ópera italiana daquele tempo e uma das obras-primas da música dramática italiana do século XIX, mas não assumiu essa mais que merecida posição.
A “Fosca” não correu mundo como “O Guarani”, obra mais popular, mais fácil de ouvir, com suas exuberantes melodias e ritmos. O que se lamenta é que obra de tal alcance e tal beleza permaneça esquecida, sem que o público possa deliciar-se com ela. Foi a obra-chave na evolução do melodrama italiano, introdutora pioneira de um novo estilo e de uma nova vocalidade. A “Fosca” marca a fase de maior avanço alcançado por CG na arte.
“Fosca” será a obra-prima musical do maestro, embora outras óperas de sua autoria obtiveram maior sucesso de público e de bilheteria.

FILHOS

Carlotta nasce em 27 de Fevereiro de 1872.
A 29 de Janeiro de 1873, nasce Carlos André, o Carletto.
Mario Gomes nasce em 10 de Outubro de 1874.
Manuel José nasce em fins de Março de 1876.
Em 6 de Setembro de 1878, nascia Itália Maria Ana Gomes.

O índice de mortalidade infantil na Itália naquela época, era escandalosamente alto, devido ao clima e às péssimas condições de higiene das cidades italianas, especialmente da qualidade da água que nelas se bebia. O clima de Milão era e é absolutamente inóspito, o inverno é úmido e enevoado, a cidade se cobre de uma neblina pegajosa, que entra pelas frestas. Os sistemas de aquecimento a carvão e a lenha eram caríssimos e as instalações precárias em uma cidade de edifícios muito velhos, alguns da Idade Média.
Dos cinco filhos de CG, três morrem em tenra idade e Carletto morre aos 25 anos, logo depois do maestro, do mesmo mal: tuberculose.
Na época em que seus filhos eram pequenos, havia um altíssimo nível de mortalidade infantil na Itália. Entre 1871 e 1875, anos em que nasceram dois dos filhos do casal Gomes, a mortalidade é de 4.950.000 crianças, das quais 1.950.000 morrem nos cinco primeiros anos de vida. Um percentual de quase quarenta por cento. E CG perde quatro de seus filhos, sobrevivendo apenas Ítala.

Os homens da política brasileira não valorizavam sua obra e sua presença na Europa, como maior representante da cultura brasileira e as campanhas contra ele, criadas por invejosos e ignorantes e com seu comportamento perdulário foram inúmeras. Assim, era difícil para CG, conseguir ajuda oficial do governo brasileiro.

Entre 1870 e 1879, CG foi o compositor que mais óperas teve estreadas na Scala, maior teatro italiano e o compositor de óperas italianas mais representado nesse teatro, depois de Verdi.

Então, surge “Salvador Rosa”, que apesar do medo de CG será um sucesso triunfal, um enredo folhetinesco e colorido, ao gosto da época na Itália, a primeira ópera sobre assuntos italianos, mais um estrondoso sucesso de público e de crítica. “Salvador Rosa” foi a ópera que mais dinheiro lhe rendeu.

CG começa a trabalhar em “Maria Tudor”. CG era obsessivo na busca de situações para efeitos musicais sensacionais. Foi esta ópera que marcou o início de um longo declínio da carreira do compositor na Itália.
A “Maria Tudor” traz, em sua partitura, exemplos da melhor música que se podia escrever dentro do panorama da ópera italiana, obra inovadora, que anos depois, teria seus modelos copiados.
No entanto, a chama de CG começava a se apagar, o seu instinto musical não era mais suficiente para dirigir a tessitura de uma ópera.

As inúmeras e violentas brigas com Adelina, amarguraram muitos anos de sua vida.
Logo, o fim do casamento de CG com Adelina e o triste destino de seus filhos, agravaram a ansiedade do maestro, tornando-se capaz de atitudes que prejudicariam em muito sua carreira e sua obra. Os desentendimentos entre o casal, que já dormia separado, se repetiriam por muitos anos, culminando em escandaloso processo de separação movido por CG.
Quanto à hipótese de ter sido adultério cometido por Adelina a causa do pedido de CG, há alguns fortes indícios.
Muita coisa tem sido escrita sem fundamento algum, especialmente sobre o comportamento de CG em sua vida conjugal.
Aliás, CG gostava bastante mesmo, era de si próprio, não se incomodava muito com o que se passava ao seu redor, se o fato não o interessava diretamente. Seu ambiente era a música de ópera, para a qual se formara desde criança. O gênio criador melódico e a riqueza de criação na composição existiam nele por natureza, sem esforço, era-lhe natural e, conseqüentemente, sem grandes elaborações do intelecto. CG não precisava do intelecto para criar, sua inspiração brotava-lhe da alma.
Sua educação, a figura do pai, o que acontecera com sua mãe em Campinas, as teorias então na moda de que a mulher é o complemento biológico e social do homem, fizeram dele, um artista que não misturava amores e mulheres com sua arte e sua produção. Não há em sua obra, uma, sequer, que se declare fruto de desenfreada paixão, nem de meditado amor, nada. CG não era dado a arroubos passionais.
Seu centro de atenção era a perseguição da glória, da fama como compositor e do dinheiro que vinha dessa glória, para poder ostentar um padrão de vida que o equiparasse a seus colegas bem-sucedidos e aos artistas de seu meio, tudo girava em torno disso.
Nunca uma mulher fez parte do objetivo de vida por ele traçado, no que aliás, CG acertou, pois, se fosse dado a conquistas amorosas, sua vida teria sido muito mais desastrosa, nem mesmo Adelina, a mais próxima de todas as mulheres de sua vida e ao mesmo tempo tão distante, a ponto de ser levada a um Tribunal sob pesadas acusações.
As aventuras amorosas de CG tem tanto valor, quanto os banquetes a que tenha comparecido em sua vida de artista. Já a separação e o processo contra Adelina é um acontecimento central na vida do compositor.
A morte seguida dos filhos e as brigas com Adelina na justiça afetaram sua saúde e aos quarenta e três anos, sentiu-se abalado, moral e fisicamente, pela primeira vez.

Depois de “Maria Tudor”, entrou em fase de lento e gradual afastamento. A “Maria Tudor” é de 1879. Só em 1889 – dez anos depois – o mundo verá uma nova ópera de CG, mesmo assim, não estreada na Itália: “O Escravo”.
A ópera mais “bonita” de todas as compostas por CG. Talvez seja a mais importante obra de CG e segundo alguns críticos, a melhor música. Foi dedicada à Princesa Izabel. É um dos maiores e mais belos cantos de amor jamais escritos por um artista à sua terra natal. Essa ópera é prova de sua total maturidade artística e do domínio completo do arsenal de recursos de que dispunha.
CG colhe mais um triunfo.
Na estréia, um dos violinistas era seu irmão Juca, que viera de Campinas especialmente para participar do evento.
Era a despedida dos irmãos, que nunca mais se veriam.

Os problemas aumentam enquanto não consegue mais compor por causa de um esgotamento nervoso que lhe tira a serenidade.
O momento era de polêmicas, CG era ligado a um regime monárquico que morria e a ópera era lindíssima.
“O Escravo” indica o início de um novo auge, não só como compositor de inigualável talento e inspiração, mas de um artista moderno, atualizado, a pensar para a frente e a encarar sua arte como um corpo dinâmico em eterna mudança.

A 15 de Novembro de 1889, Marechal Deodoro proclamava a República. CG encontrava-se em Campinas. O novo regime nega-lhe a pensão que solicitara o amigo Francisco Glicério, por ser CG amigo e protegido da família imperial, que havia sido banida do país.
O Imperador lhe havia prometido a nomeação para diretor do Conservatório de Música do Rio de Janeiro. CG queria esse cargo, que não o obrigaria a ficar no Brasil durante todo o ano.
A exoneração de D. Pedro II foi para ele duro golpe.

Depois de “O Escravo”, CG dará ainda ao mundo duas partituras em que continuará a ser melódico, inspirado e inventivo: “Condor”, ópera estreada em 1891, na Scala e “Colombo”, poema vocal-sinfônico, estreado no Rio de Janeiro em 1892, obra prima absoluta.

“Condor” foi a ópera que obteve um discreto sucesso e destituída de qualquer interesse teatral. Sentia dores na garganta e a piteira, de vez em quando, feria-lhe a ponta da língua. Esta ópera é um novo momento na arte de CG.

“Colombo” é a última grande composição de CG, que aos cinqüenta e seis anos de idade, com mais de trinta anos, chegava à posição de absoluto domínio de todos os imensos recursos de que dispunha, pelo longo acúmulo de conhecimentos.
CG não teve um só imitador no Brasil, nem mesmo no aspecto exterior de suas obras.
O poder público não gostava e não gosta dos artistas em nosso país e CG entrava na dança, assim como Pedro Américo, Machado de Assis, João Caetano, Castro Alves, encarados como parasitas e inúteis. E a posteridade, ao invés de encará-lo como grande artista, poderoso inovador, autor de obras magnificamente importantes para a história do gênero que escolheu, o vê como um renegado.

Bach morreu quase completamente cego, mas não se fala do Bach infeliz – é de sua obra, de sua importância para a história da arte que se fala.
Mozart foi enterrado como indigente em cova rasa e também não há referências ao pobre Mozart, o adjetivo não cabe, quando se percebe o enorme legado deixado por ele e assim, Beethoven, surdo e bêbado e assim, Shubert a morrer tão jovem e assim, Schumann, louco de pedra, atirando-se ao Reno, internado por Clara no Manicômio e assim Chopin asmático e tuberculoso, morto antes dos quarenta anos. Não é nas desgraças desses artistas que se fixam seus biógrafos. Citam-se as penúrias, pois, elas às vezes, explicam a obra.

CG deu ao mundo, grandes obras inovadoras, mesmo com sua vida dispersiva e desorganizada.
CG é a figura de maior relevo no panorama operístico italiano dos anos setenta e oitenta, pela originalidade de idéias e personalidade de estilo. Não se pode compreender a fase de transição do melodrama romântico, chamado “naturalista”, sem se fazer referência à sua obra.

As óperas de CG, hoje, só são encontradas, entre as páginas das partituras conservadas nas bibliotecas, única fonte acessível para o seu conhecimento direto.

Em 1896, a situação financeira de CG era, realmente, penosa na Itália e a vinda para o Brasil se fazia imperiosa. O motivo principal de ter CG morrido em terra brasileira foi a necessidade econômica e não um poético patriotismo a fazê-lo querer morrer aqui, mesmo porque, deixara dois filhos na Itália a esperá-lo.

Já em fase terminal, vem para o Pará. Sentia muitas dores na garganta e na língua, inteiramente tomada pelo câncer.
Juca lhe telegrafava de Campinas, pedindo notícias sobre o seu verdadeiro estado de saúde, querendo visitá-lo. CG responde que estava melhor.
A 5 de Julho, em total estado de fraqueza, toma posse como diretor do Conservatório de Música do Pará, em meio a solenidades, discursos e bandas de música. Toca-se a sinfonia de “O Guarani” e o Hino Nacional e o Pará dá posse, como diretor de seu tão sonhado Conservatório de Música, a um CG que morria.

Às dez horas e quinze minutos da noite de 16 de Setembro de 1896, o mundo se despede do autor de óperas mais encenado na Scala, depois de Verdi, na década de transição mais importante para o desenvolvimento do melodrama italiano, do primeiro autor de uma “revista” musical na Itália, do pioneiro criador de um novo modo de compor música para o palco, do introdutor de uma nova forma de agilização do discurso musical, do mais importante elemento de ligação entre o velho de Verdi e o novo de Puccini.

E então, eu me pergunto: por que CG partiu para o mundo e meu avô permaneceu em Campinas ?
E encontro a resposta:
Porque é difícil aprisionar os que tem asas.


DENISE MARICATO – É sobrinha trineta de Carlos Gomes, professora de Inglês formada pela PUCC com vários cursos no Brasil e no exterior, membro da Academia Campinense de Ciências, Letras e Artes das Forças Armadas, onde ocupa a Cadeira Maestro Antonio Carlos Gomes.

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